Cozinha da Matilde

Gostoso demais #3 – Pamonhada (em) “no” Goiás

Fotos por Mayara Maluceli – Revisão: Valéria Pandjiarjian

 

Cresci assistindo pamonhadas em Goiás e no Triângulo Mineiro (o naco mais goiano de Minas). Sempre marcavam dias felizes: a abundância de milho verde no ponto perfeito, a chegada de uma pessoa querida, uma conquista a ser comemorada.

E fazer pamonha sempre foi um momento de encontro, porque não é comida que se faz só. Embora seja possível, nunca ouvi contar de alguém que tenha por hábito fazer apenas 4, 6 ou 10 pamonhas. Pamonha demanda exageros, panelões e sacas de milho, e requer, portanto, muitas mãos, articuladas em perfeita sintonia, cada uma cumprindo sua função em uma linha de produção improvisada, que começa em volta da mesa e invade o quintal.

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Conforme avancei a vida de pamonhada em pamonhada, descobri que, no fundo, o que menos importa ali é a pamonha, ela apenas coroa o dia quando chega à mesa quentinha e aquece a barriga. Muito mais que fazer um acepipe, a pamonhada, parafraseando o poetinha, é a arte goiana do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

Porque enquanto derruba sacas de milho, corta as pontas, descasca, separa as cascas, limpa as espigas, rala e segue de tarefa em tarefa, até receber no fim do dia o seu quinhão amarelo, quentinho, envolto em palha, a gente fala da vida, conta as novidades, se afofa, ri e fala junto, tudo ao mesmo tempo e agora. Tem motivo melhor para um encontro que uma tarefa imensa pra dar conta?

E foi do reencontro com um cara muito querido, o Leo Montico, daqueles que a gente tem empatia desde o momento zero — e depois só confirma a “genteboíce” da pessoa —, que resolvi tirar do papel um antigo sonho de captar, em plena pauliceia, esse ritual goiano do encontro.

Um dos muitos encontros em volta da mesa que fazem do Brasil um país gostoso demais!

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Eu só posso dizer que estou muito emocionada com o resultado. Muito mesmo.

A Pamonhada

Segundo a Telma Machado, estudiosa da comida tropeira goiana e cozinheira à frente da Fazenda Babilônia, em Pirenópolis — que vai virar post logo-logo no Recomendações da Casa (é pamonheira como eu e um dos maiores presentes que ganhei no último ano, uma referência de comida e goianidades que vou levar pra vida) —, a pamonhada era uma das maneiras com que se comemorava, em Goiás, a chegada dos tropeiros.

Localizado no coração do país, o estado de Goiás sempre foi um local de difícil acesso. Passado o seu curto ciclo do ouro, a região seguiu com sua vida isolada, e a chegada de tropeiros, por muito tempo e para muita gente, era o único contato com o restante do Brasil. Traziam as bruacas abarrotadas de diversos itens que não eram produzidos na região, entre eles o trigo (não por acaso as quitandas goianas são em sua maioria sem glúten, derivadas da mandioca e do milho, aponta Telma) e o sal, item muito valioso dada a distância do mar.

Por conta dessa escassez de alguns víveres, em especial o sal, me explica Telma, quando chegavam os tropeiros com um novo suprimento, as pessoas tinham muito a comemorar, e daí a pamonhada, e com ela a explicação e o porquê de chamarmos a pamonha “de sal” e não salgada.

Se o sal era tão raro, e quando ele chegava havia abundância, então do que se fazia a pamonha? De sal, é claro! O ingrediente nobre era o sal, e a pamonha não era simplesmente salgada, ela era “de sal” e simbolizava, portanto, essa fartura!

E fartura a gente comemora junto, compartilhando comida e, assim, agradecendo a generosidade da natureza e da vida.

O ritual

O milho ideal pra fazer pamonha é aquele macio, amarelo-claro. Não pode ser muito duro e amarelo-escuro, senão a pamonha fica dura e ressecada, e também não pode ser um milho muito novinho com grãos clarinhos, pois a pamonha fica muito molenga.

Chama os amigos e faz uma roda, coloca as sacas de milho no meio e distribui as funções:

Cortar a ponta das espigas, descascar, separar as palhas boas.

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Retirar os cabelos das espigas, com uma escovinha ou com palitinho.

A Telma sugere que a gente sempre deixe alguns pois são bons para problemas renais.

pamonhada-retirando-so-cabelos-das-espigas-(mayara-maluceli-para-cozinha-da-matilde)

Aí passa as espigas pra turma da ralação.

Dois efeitos colaterais inevitáveis: ralar os dedos (haja esparadrapo!) e ficar com a roupa toda respingada de amarelo!

Em compensação, trabalha o tríceps que é uma beleza! <3

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Em paralelo, é preciso ferver as liguinhas (elásticos) que vão amarrar as pamonhas (de cores variadas para diferenciar cada tipo), pois elas são polvilhadas de um pó pra evitar que grudem umas nas outras, e se a gente usar sem ferver previamente, várias vezes, trocando a água, a pamonha fica com gosto de elástico, eca!

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Também é preciso fritar as linguicinhas que vão no meio das pamonhas de sal e cortar os bastonetes de queijo fresco que são colocados no meio de todas as pamonhas (em Goiás é assim, toda pamonha tem um naco de queijo no meio).

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Terminada a ralação, hora de temperar a massa de milho. Muita manteiga com sal derretida. É ela que vai dar a consistência cremosa da pamonha.

A pamonha goiana não é coada, usamos o bagaço do milho (daí mais um motivo para as espigas serem novas, macias).

Antigamente e ainda hoje em alguns lugares se usa banha de porco, o que fica uma delícia.

Depois a gente divide a massa em duas e tempera metade com sal e metade com açúcar.

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Hora de chamar o povo em volta da mesa e começar a montagem das pamonhas. Faz novamente uma linha de produção… e falação!

Faz o copinho com a palha, coloca a massa dentro, junta o queijo e a linguiça.

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Escolhe outra palha e com ela fecha o copinho, passa a liguinha e está feito o origami goiano!

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Segue firme na produção, cada um a seu modo, o importante é terminar com a mão amarela e o sorriso de orelha a orelha!

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E afofar cada filhotinha que fica pronta!

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Hora de levar as lindezinhas para cozinhar: duas panelas, uma para as de sal e outra para as doces (assim não misturam sabores).

É muito importante que a água das panelas esteja fervendo, do contrário o conteúdo das pamonhas vai vazar pra água.

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É preciso cozinhar por cerca de 40 minutos. Aí é só chamar o povo pra atacar a produção do dia!

No fim, resta uma pilha de palhas!

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E gente em festa pra tudo que é canto!

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Comemorando a alegria de estar junto, que é o que de fato importa nessa vida!

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E em dia de pamonhada até a Guariroba se dá bem!

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Pois pamonhada é o puro amor verde e amarelo!

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Bom apetite!