Cozinha da Matilde

Vitrolinha – Dilemas Mundanos (com colaboração de Márcia Ottoni)

Foto: Parede Viva – Campeões Anônimos – Pimpando carroças

Um pouco antes da viagem de férias deste ano decidi que ia sair do meu emprego. Não estava feliz e isso estava refletindo diretamente na minha vida e na minha autoestima.

parede-viva---campoes-anonimos---pimpando-carrocasDecidi sair, mesmo sem ter nenhuma proposta de trabalho. E imaginei zilhões de coisas para fazer, arquitetei planos, pensei metas, planejei o futuro…. Ploft, tudo por água a baixo. Recebi uma proposta incrível para trabalhar na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, SMDHC, em um primeiro momento na Coordenação de políticas para População em Situação de Rua. Mesmo nunca tendo trabalhado com o tema, aceitei pois a proposta era indecorosa no sentido de possibilidades dentro desta recente e  histórica Secretaria.

Amei o trabalho, amei voltar a trabalhar no centro da cidade, amei a equipe da SMDHC, amei a voltar a ter um ritmo louco, mas…. sofri em ter que adaptar toda a minha vida, o que quer dizer mudar a rotina que eu tinha com o Tom, de levá-lo para a escolinha no meio da manhã, buscá-lo antes do sol se por, com tranqüilidade, as vezes indo para o parque, outras passeando pelo bairro.

Nunca precisamos ter alguém para ajudar aqui em casa todos os dias, a super Nilza sempre resolveu duas vezes por semana. Sempre levei e busquei o Tom de carro, e nunca nos importamos que a escola fosse 3km de casa. Mas na primeira semana de trabalho tivemos que repensar em tanta coisa…

Esta história de dedicação ao trabalho versus maternidade é um dilema que me despedaça.. correr contra o tempo, tomar decisões, sair correndo de reuniões, cabeça no trabalho, coração na cria, enfrentando São Paulo e toda as pedras de sua selva.

Teve um dia que eu não agüentei. Achei que seria melhor deixar o carro em frente a escolinha do Tom e fui para o trabalho. No final do dia a reunião (importantíssima, claro) durou mais do que eu esperava. Sem nenhum real na carteira, mais de 30 minutos no ponto de ônibus, vi no relógio: 18h45, e comecei a chorar… peguei um táxi, parei no caixa eletrônico, continuei chorando. Busquei o Tom disfarçando o choro, entrei no carro, ainda disfarçando o choro, cheguei em casa e fui chorar mais no banheiro.

Nisso, a Márcia me ligou, e contando toda a história, a nuvem de lágrimas não saia dos meus olhos (tanto chororo só podia ter uma citação brega). Ela me ouviu com toda a paciência e depois soltou: “Marina, as nossas famílias estão longe. O que a gente tem que fazer é se ajudar. Eu moro perto da Catavento, e quando você precisar eu busco o Tom para você”. Parei o choro na hora, como se o céu se abrisse depois da tempestade. O grupo de mães e pais que faço parte no facebook, também foi fundamental e acolhedor, e o bacana é a troca de experiências e eu sou só mais uma em um milhão com este dilema.

Eu já falei aqui da minha sorte de ter conhecido a Márcia, e do Gabriel, filho dela ser o melhor amigo do Tom. E uma das coisas que me faz viver é sempre se surpreender com as pessoas! Explico:

Eis que eu precisei que ela buscasse o Tom, na véspera do feriado de 1º de maio. Esperei o Will chegar do trabalho (pois ele só consegue sair do seu trabalho de funcionário público às 19h), e fomos lá na casa dela e do Rafa buscar o Tom e comer uma pizza. A alegria do Tom em nos receber na porta do elevador para contar como tinha sido legal o seu final de tarde, foi um daqueles momentos que eu não vou me esquecer tão cedo.

Mas entre uma garfada de pizza e uma prestada de atenção nos meninos, a Márcia me contou uma história que me fez transbordar de orgulho. Primeiro eu comecei a contar o que eu estava fazendo na SMDHC. Ela vira e fala, “sabia que estes dias eu fui conversar com um cara que estava dormindo no chão”. E começou a contar. E eu fiquei de boca aberta pela iniciativa. Tirando o meu vô Mauro, que era do Lions, Rotary, e todas as organizações assistenciais de Mogi das Cruzes, eu nunca soube de ninguém que tenha feito uma abordagem assim, no meio do dia, no horário de trabalho, a alguém vivendo em situação de rua.

Pedi para ela escrever esta história para publicar aqui no Vitrolinha. E ela prontamente me mandou o texto, porque ela é daquelas que gosta de escrever, e faz com facilidade e muito bem. (Qualquer dia vou pedir para ela publicar aqui as historias que ela conta para o Gabriel. São incríveis!)

 

No meio da Consolação.

 

Acho incrível como certas coisas se tornaram banais no Brasil. Tenho a sensação de que ninguém mais se sensibiliza com assassinatos, assaltos, corrupção, crianças pedindo esmolas nas ruas e a miséria vivida por milhares de brasileiros. Em São Paulo, cidade da pressa e da urgência, é comum vermos pessoas passarem ao lado de um mendigo dormindo na calçada, caído na sarjeta, e até quase tropeçarem no mendigo e nem perceberem. É normal uma pessoa caída na calçada? Dormindo, desmaiada, apagada? Pode estar passando mal, pode estar morta. Ninguém se importa?

Eu não consigo passar por uma pessoa nessas condições e continuar meu caminho em paz. No mínimo fico chocada e chateada. Dessa vez resolvi me envolver. Estava passando pela Rua Consolação, perto da Alameda Lorena, bairro nobre, de gente nobre, e um mendigo estava caído na calçada. Muita gente “nobre“ passava por aquela rua desviando dele, pois ele estava no meio da calçada, atrapalhando o caminho. Resolvi abaixar e cutucá-lo: “o senhor está bem? Que tal se sentar perto do muro, onde passa menos gente e não bate sol?”

Ele se sentou, olhou pra mim e eu comecei meu interrogatório: “como o senhor está? quer que eu chame alguém? Quer ir para um abrigo? Tem alguém da sua família que tenha uma casa? Posso providenciar um transporte até lá.“

Era um senhor com aspecto de uns 60 anos, nas condições mais precárias que se pode ver: sujo, roupa suja, dentes podres, com um cheiro ruim muito forte, caído.

Ele olhou pra mim e disse: “filha, posso falar?” Tive mais uma forte sensação: a de que ninguém o escutava a muito tempo.

“Claro que pode falar, meu senhor”

“Filha, eu tomei uma cachaça e estou na maior ressaca”.

“O senhor já bebeu e comeu algo hoje para curar essa ressaca”?, eu disse preocupada.

Ele respondeu que não e eu me prontifiquei a providenciar algo pra ele se alimentar. E quando o informei que iria até a padaria da esquina comprar comida, ouvi: “filha, pode comprar um cigarro pra mim? E completou: “vício de cigarro é pior que vício de cachaça”.

Então, me senti motivada em proporcionar momentos de alívio e prazer para aquele velho homem. Comida, cigarro e disponibilidade em ouvir.

Comprei suco de laranja bem gelado, sanduíche e cigarro. A compra do cigarro na padaria foi curiosa. Pedi um maço de cigarros. Quando a atendente me questionou que marca de cigarro eu queria, eu disse: “não sei, qualquer um, não é pra mim, é para o mendigo que está ali fora”. Ela ficou muito revoltada: “você vai comprar cigarro para o mendigo???” Eu fui rápida na resposta: “você sabia que vício de cigarro é pior que vício de cachaça?” E completei: quero também uma caixa de fósforo pois mendigo não tem isqueiro.

Longe de mim sustentar ou incentivar o vício de substâncias prejudiciais a saúde de alguém. Mas o caso era que eu queria satisfazer as necessidades daquele cidadão que estivessem ao meu alcance naquele momento, satisfazer um desejo dele, algo que me foi pedido e eu podia cumprir.

Entreguei o sanduíche e o suco pra ele e disse ao mostrar dentro da sacola, o maço de cigarros e a caixa de fósforos: “esse é nosso segredinho”. Ao ver o “segredo” na sacola o homem ria e chorava ao mesmo tempo. E repetia: “filha, Deus te abençoe”.

Apesar da necessidade imediata resolvida, eu ainda insisti no assunto de procurar alguém ou um abrigo e ele me explicou a situação. Disse que mora na rua a 26 anos, que não tem família e que não gosta dos abrigos. Segundo ele, as pessoas nos abrigos são más e roubam o dinheiro dele. E ele prefere então ficar na rua.

Pegou na minha mão para agradecer ainda mais e fui embora totalmente reflexiva em como algumas pessoas vivem em condições tão desumanas, na naturalidade que pessoas em situações totalmente adversas convivem nas grandes cidades e em como pequenos gestos podem emocionar e confortar. Me senti emocionada e confortada em poder ajudar e escutar. Espero que ele também.

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Como trilha para todo este post, escolhi algumas músicas que tem em seu tema os Direitos Humanos. E para buscar inspiração, peguei uma publicação antiga que tenho aqui em casa, “Jovens Lideranças Comunitárias e Direitos Humanos”, em que uma tal de Letícia Massula, ex-advogada e atual super ultra cozinheira, desenhou uma oficina temática chamada “Oficina de Arte e Direitos Humanos”

Todos Estão Surdos – Roberto Carlos

Comida – Titãs

É  – Gonzaguinha

Quando a Maré Encher – Nação Zumbi

Brejo da Cruz – Chico Buarque

Haiti – Caetano Veloso e Gilberto Gil

Woman is the nigger of the world – Cássia Eller

A carne – Seu Jorge

Criolo – Não existe amor em SP