Cozinha da Matilde

Coisa de casal #umqueijoeumarapadura

“Fazer queijo é uma música que se dança juntinho.”

Uma rodada despretensiosa por algumas queijarias da Serra da Canastra é o que basta pra perceber que fazer queijo é coisa de casal. É uma música que se dança juntinho.

Nas pequenas queijarias artesanais, a divisão de tarefas é clara: a mulher é responsável pelo queijo em si e o marido pelas vacas, o estábulo e a ordenha.

E como a ordenha acontece muito cedo, no meio da manhã os homens estão terminando de lavar o curral ou manejando as vacas no pasto, ou cuidando dos bezerros. As mulheres estão de toquinha na cabeça, máscara, jaleco, protegidas pelas telas que vedam cada abertura da queijaria, permitindo a passagem apenas do vento.

Dependendo do horário, elas estão fazendo a dessora, apertando a massa do queijo pra tirar o excesso de soro, um trabalho que demanda muque. Ou já estão com os queijos nas formas, deixando o sal descansar de cada um dos lados, para então remover o excesso e posicioná-los, um a um, na bancada inclinada para retirar o pingo pro dia seguinte. Depois disso, tem sempre queijo pra fazer a grosa ou rala e para dar o acabamento final. Também é preciso virar cada um dos queijos que estão na cura pra casca ficar uniforme. E a queijaria tem que estar sempre limpa, assim como cada equipamento, antes e depois do processo.

Se o leite não é bem tirado chega contaminado, se não é tirado e a vaca está sem bezerro pode ter mastite, secar o leite. Se a área de ordenha não estiver limpa (antes e depois) e os úberes da vaca também, o leite contamina. Tem o horário dos bezerros mamarem, duas vezes ao dia, tem que levar as vacas pro pasto, depois tem a hora de recolher. É preciso cuidar do leite e dos bezerros, completar o ciclo.

Isso todo dia, sem pular domingo ou dia santo. E tudo pareadinho, cada qual com sua parte na coreografia, nessa relação quase simbiótica, no melhor sentido. O queijo só sai dessa dança. Não é trabalho de andorinha solitária.

Nesse ambiente, a gente pega as questões de casal no ar. Se algo andou torto, um olhar atravessado ou uma espetadinha denunciam.

— Pega você. — Faz você! — rasgam o ar como faca.

— Quando o casal tá assim, o queijo não fica bom — explica alguém, que já emenda: Quando ela está virada comigo não fica tão bom. Não fica mesmo. Vocês podem nem sentir a diferença. Mas eu sei que é queijo daquele dia.

Mas o comum é andar bem. Nos mais jovens, em começo de casamento, um ajuda o outro. Ela vai pro curral, ele entra na queijaria, ajuda na dessora. O olhar espichado, o sorriso incontido de canto de boca e aquela urgência de estar junto o tempo todo estão ali, preenchendo cada canto.

Entre os casais com mais tempo de estrada (e de queijo) as palavras vão perdendo sentido, o olhar já sabe dizer quase tudo. Mesmo assim, a cada dois minutos de prosa Dona Waldete enche a boca pra falar do “meu marido”. O rosto se ilumina enquanto vai desfiando o rosário das histórias do homem pelo qual deixou Medeiros, sua cidade natal.

A história se repete, e em qualquer das queijarias toda prosa é pontuada por discretos elogios de par a par.

— Ela mantém tudo limpo, e vou te dizer que o que diferencia o queijo é a limpeza. A receita é a mesma, se for tudo limpo vai sair um bom queijo.

— Ele sempre me ajuda aqui na queijaria, esse trabalho acaba o braço da gente.

— Ela tem mão muito boa pra temperar, mantém o padrão do sal. O segredo do nosso queijo é isso e o bolor.

E o amor também se traduz nesse reconhecimento que embala a dança diária de horas, dias, anos vividos e amanhecidos no curral e na queijaria, entre vacas e bezerros, cortando a massa com o sinal da cruz, dessorando, guardando o pingo, grosando, virando e maturando o queijo que define seu modo de viver e de ser par.

***

Feliz dia dos namorados!

(Desde o ano passado A Queijaria, em São Paulo, passou a denominar os queijos com o nome dos casais produtores, reconhecendo as duas partes dessa linda relação. Até então eram nominados apenas com o nome do marido).

receita

 

Queijo Canastra

Pra fazer queijo, comece com o leite na temperatura que saiu da vaca, nem frio nem quente. Para cada queijo são necessários 10 litros de leite. É nele que a gente coloca o coalho e o pingo, que é a isca do queijo do dia anterior e é o que vai passar as características de sabor. Deixe descansar 40 minutos e então corte a massa em cruz, comece a escorrer a massa para retirar o soro, porcione e passe para um pano as porções da massa e começe a espremer pra terminar de dessorar. Quando a massa ficar compacta coloque-a em formas, passe sal na superfície de um dos lados e deixe na bancada inclinada para terminar de escorrer o soro, que será coletado em uma bacia e é o pingo a ser usado no queijo do dia seguinte. No fim do dia tire o sal com a mão, vire o queijo e coloque o sal do outro lado para passar a noite. No dia seguinte, o queijo deve ser lavado em água corrente pra tirar o excesso do sal e só então ele é encaminhado pra cura, onde deve ser virado todos os dias pra uniformizar a casca. Depois de uns 40 dias é feita a grosa ou rala pra uniformizar a casca e tapar pequenos buracos que surgem durante a cura com a massa fina ralada. Depois o queijo volta pra cura para finalizar.

Doce de leite com queijo 

Além do queijo, as mulheres das queijarias mineiras costumam também fazer doces com as frutas do quintal e com leite, é claro. Comemos na Canastra doce de leite de cortar finalizado com queijo curado ralado, delicioso. Me lembrou as queijadinhas de corte e as ameixinhas de queijo do Triangulo Mineiro. Só que enquanto na Canastra o queijo é adicionado ao doce de leite, as ameixinhas são feitas a partir de uma massa de queijo ralado e ovos, cozida em calda de açúcar, e a queijadinha é feita vertendo queijo ralado diretamente em uma calda de açúcar, formando um doce de corte, que a gente pode deixar também no ponto de puxa. Diferentes mas igualmente deliciosas, aproveitam toda sobra de queijo ultracurado aqui de casa.

 

Texto e fotos: Letícia Massula – Revisão: Valéria Pandjiarjian