Cozinha da Matilde

Salteado de Palavras 2 – E por falar em copa…

 

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Devo confessar que sempre gostei de copa.

Acho que o primeiro registro desse gosto vem da infância. Na casa da minha avó paterna − onde sempre estávamos meus irmãos, primos e eu − havia uma copa integrada à enorme cozinha azul e branca.

Era de lá que eu via minha avó cozinhar. Não raro, ao som de Yerevan Erepouni no seu gravador de rolo. Tantas – e quantas – vezes, acompanhada de minha mãe. E aos domingos, nos tradicionais almoços de família, também de minha tia.

Foi lá que fiz as melhores refeições dos tempos de menina. Escutando histórias sobre a vida e imigração de meus avós – entre um sarmá (charuto de folha uva ou repolho), dolmá (abobrinha, pimentão e berinjela recheados com carne e arroz), herissé (trigo em grão amassado com carne desfiada) – aprendi e apreendi, pelo paladar, um pouco da cultura armênia e de mim.

Perto da mesa, no armário embutido da copa, em meio às louças, ficava o principal “esconderijo” − e mais manjado − de doces, chocolates, balas e várias delícias típicas proibidas, porque em geral reservadas às visitas. Atacá-lo era uma diversão tão boba quanto gostosa. Às vezes trancado, lá íamos nós em busca da chave do “tesouro”. Sei lá, acho que “esconderijo de vó”, assim, guarda algo de bom, lúdico, carinhoso. Provocação inteligente pras nossas descobertas inocentes. Ou talvez, inocente provocação pras nossas inteligentes descobertas.

Naquela mesa ele fazia falta. Eu era bem pequena quando ele faleceu, e talvez por isso a referência: “casa da minha avó paterna”. Mas foi meu avô quem a construiu, no final da década de 1940. E depois, construiu ainda a casa dos meus pais, onde morávamos, com copa integrada à cozinha, é claro. As duas casas tinham entradas independentes que davam para ruas paralelas, mas estavam interligadas por um quintal, ao qual se tinha acesso pelas portas da copa e cozinha de cada uma.

Na outra casa em que vivi, durante a adolescência e parte da vida adulta, também havia uma copa, não integrada, mas contígua à cozinha, em cômodo separado. Ficava bem abaixo do quarto que eu dividia com minha irmã. Quem era “de copa e cozinha” − como se diz de alguém muito íntimo da casa − deve lembrar o quanto ela foi “ocupada”, noite e dia. Era muito gostoso. E difícil, só mesmo quando eu queria dormir. Copa faz um eco… ! Nessa casa, minha avó passou conosco os últimos anos de sua vida. Ainda bem que tínhamos uma copa.

Mas há outro tipo de copa da qual gosto muito: a das árvores. Na parte superior, formada pela ramagem, fica linda quando cheia de folhas, às vezes com flores e/ou frutos, distribuindo-se em forma mais ou menos convexa, ou mais alongada, globosa…  Nessa vida urbana, foi mais que um privilégio (pra quem sempre teve tantos) desfrutar de abacateiro e pitangueira na casa da adolescência.

Copa é também a forma simpática e abreviada de se referir ao charmoso bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, um dos que abriga trechos bem arborizados na área urbana. Os oitis da Rua Santa Clara, por exemplo, plantados no início da década de 1930, fazem dela hoje uma das ruas mais arborizadas da cidade, ainda que não se deva à copa de suas árvores a origem do nome do bairro.

Nesse mesmo bairro, considerado o berço da bossa-nova, caminham pela orla da praia pessoas de várias idades e partes do mundo, no calçadão da famosa “princesinha do mar”, como consagrada no samba-canção de Alberto Ribeiro e João de Barro (o Braguinha). E sobre o belo chão de pedras portuguesas, com desenho de ondas em padrão mar largo, costumam andar protegidas pela copa de chapéus, viseiras ou bonés – parte superior que cobre diretamente a cabeça – em uma variedade de cores, tamanhos, tecidos, estampas, estilos. Também assim, as que vão com o seio abrigado pela copa côncava do sutiã de um biquíni ou de uma lingerie.

Segundo o último censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2010, Copacabana ainda concentra o maior número absoluto de idosos (60 anos ou mais) entre os bairros do país. Nota-se em um simples passeio pela região. Nas praças do bairro também não é raro encontrar grupos de idosos, em sua maioria homens, que se ocupam de jogar cartas nas mesinhas de concreto. O que me faz lembrar de duas coisas: minha avó, quando viajava ao litoral, gostava de jogar cartas com suas amigas; um dos quatro naipes das cartas do baralho é o de copas, em que cada ponto é representado por um coração vermelho.

Copa é ainda um dos cinco distritos da província de Catajambo, na região de Lima, no Peru. Hoje, o Peru está dividido em 25 regiões e a província de Lima. As regiões (e/ou departamentos) são divididas em províncias que, por sua vez, são subdivididas em distritos. A província de Lima, na costa central, é a única que não pertence a nenhuma região. Nela está a capital do país, a cidade de Lima, da qual guardo memórias afetivas e gustativas, colhidas ao longo de duas décadas em que militei e trabalhei, como advogada feminista, na defesa dos direitos das mulheres.

O país faz jus à fama: uma das melhores cozinhas da América Latina. E já me invade um nostálgico apetite, ao só mencionar essas três delícias: o ceviche, considerado “prato nacional” (à base de peixe cru marinado em suco de limão ou lima, cebola e pimenta); os versáteis e populares anticuchos (espetinhos de carne); e, um dos mais antigos pratos, a pachamanca (espécie de cozido de carnes e vegetais, embalados com ervas em folhas de bananeira, preparado dentro de um buraco na terra). Sem falar na lúcuma, fruto andino de casca verde e polpa amarelada, muito usado em sobremesas, e meu preferido no sorvete.

Junto com a gastronomia e a lúcuma, a bebida típica do Peru − o pisco – integra a lista dos produtos “bandeira” do país, já reconhecidos oficialmente (são 13 no total, até fins de 2013).  Incluem, no geral, produtos ou expressões culturais cuja origem ou transformação deu-se em território peruano, com características que representam a imagem do país no exterior. E por lá, pisco é mesmo “assunto de Estado”. Além da histórica controvérsia com o Chile sobre a denominação de origem, a preocupação normativa em estabelecer as condições de elaboração de aguardentes de uva com direito de uso do nome “pisco”, no Peru, vem de meados da década de 1960.

De lá pra cá, o tema ganhou reconhecimento em leis, resoluções e normas técnicas peruanas que ditam quase tudo a respeito. Considera-se pisco: a aguardente obtida exclusivamente pela destilação de mostos frescos de oito “uvas pisqueras” (as aromáticas: Itália, Moscatel, Albilla e Torontel; e as não aromáticas: Quebranta, Negra Criolla, Mollar e Uvina) recentemente fermentadas, utilizando métodos que mantenham o princípio tradicional de qualidade estabelecido nas zonas de produção reconhecidas (principais cinco regiões: Lima, Ica, Arequipa, Moquegua, Tacna).

Os diferentes tipos de pisco (puro: de uma só variedade de uva; mosto verde: com fermentação interrompida; acholado: mesclas de uvas aromáticas e não aromáticas) estão sujeitos a regras sobre equipamentos, amostras, métodos de ensaio, rótulo, envase, requisitos organolépticos e físico-químicos. Devem, por exemplo, ser incolores e com valores de grau alcoólico nunca menores de 38 nem maiores de 48.

Fora dos padrões é uma aguardente de uva, mas não pisco do Peru.

Impossível evitar a imagem da “pisa de uvas” que vem à mente. Iniciada ao entardecer, para evitar o calor do dia, e prolongando-se em cantos até a madrugada. É na copa, grande vasilha de aduelas, também chamada de cuba, balseiro ou dorna, que se pisa a uva e deixa-se o mosto fermentar antes da destilação. Ainda que, hoje, muitas vinícolas já tenham mecanizado essa etapa do processo artesanal. Numa copa, pequena taça, bebe-se o pisco.

Por seu alto grau alcoólico, o pisco costuma ser usado mais como aperitivo, combinado a petiscos com sabores ácidos, fortes e picantes. Talvez vá bem acompanhado de copaembutido do time da mortadela, do presunto, apresuntado e salame – que se prepara em geral só com carne suína. Assim como o salame, a copa leva mais tempo na fabricação. Não é cozida nem estraga com facilidade, pois é desidratada e depois curada com sal. Provém da região da nuca do porco, obtida de um corte chamado sobrepaleta.

E o time do Peru, país onde o futebol não é produto bandeira, mas é adoração, não estará por aqui nesta fase do torneio da Copa do Mundo 2014. Dos que estarão, aliás, quem levará a taça? Troféu cujo atual formato já não é o de uma copa, em que se “bebe a vitória”. O que vai ter ou não vai ter nessa Copa, o que vai ser depois dela? Entre protestos, debates, reflexões, além de #hashtags, quem sabe haja espaço para futebol. Sem racismo e xenofobia, sem qualquer violência, dentro e fora dos campos.

Num feliz silêncio, fecho-me em copas, com uma lembrança a mais.

Era naquele quintal – com piso de caquinhos de cerâmica vermelhos, salpicado de cacos pretos e amarelos – que ligava a copa e cozinha da casa dos meus pais à copa e cozinha dos meus avós, onde aos domingos meus irmãos, primos e eu costumávamos bater uma bolinha.