Cozinha da Matilde

Bonsmara: Bife ancho na beurre noisette

“A vida real pode ser uma merda, mas é o único lugar onde se pode comer um bom bife.” (Woody Allen)

 

Um amigo querido, Jean Philippe, está trabalhando com produtores do gado Bonsmara e me perguntou se eu não gostaria de fazer uma degustação com alguns cortes. É claro que topei, ainda mais depois dele discorrer com entusiasmo sobre a qualidade da carne. Também confiei que viria um bom produto, meu amigo, como a maior parte dos franceses, cozinha, adora comer e tem um ótimo paladar… por outro lado, dei um desconto à sua efusividade uma vez que é o produto que ele vende. E de mais a mais, meu parâmetro de boa carne era, até ali, o assado de tira uruguaio do El Palenque, de Montevideo, já contei isso aqui.

Conversei com a Larissa, minha parceira, combinamos o que fazer, que cortes gostaríamos de trabalhar. No dia combinado, chegam os carnes que pedimos e mais algumas que Jean queria que a gente  experimentasse. De cara fiquei impressionada com a textura, o marmoreio lindo, a cor clara da gordura. Mas ainda faltava checar o sabor, que a esta altura eu já tinha certeza que era muito bom.

Mãos à obra, chamamos os amigos apreciadores de carne, fizemos um mesão com vários acompanhamentos e nos debruçamos sobre o produto. Fiz um rosbife com parte de um mignon e com o restante Lara fez um steake tartare perfeito, que você confere lá no Sem Medida, cortado na pota da faca. Fizemos a rabada no vinho com agrião e cebolinhas, com uma das fraldinhas fizemos um ragú e um hambúrguer (também na ponta da faca) servido com bearnaise (arte do Gus, que se juntou ao grupo depois de largar o batente lá no Chef Vivi). Metade do bife ancho fiz na frigideira, banhado com beurre noisette, a outra metade bem como o assado, a prime rib, picanha e a maminha fizemos na churrasqueira.

Mesa posta, parti pro ataque. Quando coloquei o primeiro pedaço na boca (para a primeira impressão escolhi minha favorita, o assado, igual ao do Uruguay) fui ao delírio com a suculência, o sabor intenso, adocicado pela gordura e também pela resistência das fibras, na medida certa… quando cheguei à cartilagem que prende a carne ao osso (a bocada que mais gosto) estava rendida e queria mais. E assim foi, corte após corte. Fiquei impressionada com a diferença para as demais carnes que estou acostumada, especialmente a leveza, e feliz da vida de ter encontrado aqui, longe do Uruguay, carne tão boa.

A esta altura do campeonato meu amigo ostentava um sorriso maroto de satisfação… e assim seguimos noite adentro, entre suspiros e silêncios profundos enquanto a galera se entregava de corpo e alma ao prazer de comer bem.

É óbvio que eu e Lara quisemos saber tudo sobre o produto, entender como chegaram àquela qualidade. Descobrimos o seguinte:

A raça Bonsmara

Bonsmara é uma raça de boi desenvolvida na África do Sul, a partir de 1937, por um zootecnista, Jan Bonsma, que a pedido do governo começou uma série de cruzamentos da raça nativa, o gado Afrikaner, com raças europeias a fim criar uma raça que fosse resistente ao clima tropical mas com produtividade maior. Todo esse processo, realizado na estação experimental de Mara deu origem a um animal 5/8 Afrikaner (Sanga) e 3/16 Hereford e 3/16 Shorthorn (Taurinos Britânicos), a única raça de gado de corte produzida pela ciência, o Bonsmara.

Até 1994 a raça ficou restrita à Africa do Sul, que à época era fechada por conta do regime do Apartheid. Em 1997 chegaram os primeiros embriões da raça no Brasil. Em 2000 foi criada uma associação de produtores. Em 2008 um grupo ainda menor, de apenas cinco produtores, resolveu se aprofundar ainda mais no sistema de produção bonsmara e potencializar a qualidade do rebanho. Durante 4 anos, fizeram uma série de pesquisas com a alimentação, subdividindo o rebanho em grupos menores com alimentação diferente, até chegar ao ideal de sabor e marmoreio que diferenciam o produto. O que os diferencia do sistema convencional de criação:

1- Os rebanhos são pequenos, grande parte deles criados em pequenas propriedades. A produção anual é muito pequena, perfaz 2.500 cabeças (quase nada se comparada à cifra de 200 milhões de cabeças de gado no país).

2- Todos os animais são mapeados geneticamente, sabe-se exatamente o pai e a mãe de cada um deles.

3 – No sistema tradicional, apenas 9% do rebanho recebe completo alimentar de milho (que garante o mamoreio) e mesmo assim, apenas nos últimos 2 meses de vida. Isso faz com que o animal produza uma camada externa de gordura, que em geral tem a cor amarela e que não amacia durante a cocção. No caso do Bonsmara, o milho é introduzido na alimentação de 100% do rebanho desde muito cedo, o que garante uma carne com a gordura clara entremeada e não apenas em uma camada externa.

4- Os bois Bonsmara são abatidos com um mínimo de 24 meses (a média fica em torno 26 a 28 meses, dependendo do tamanho do animal), contra os 18 meses das raças convencionais.

Eu que já fiz estágio em açougue, adorei entender todo o processo de produção de uma carne de qualidade, mas vamos ao que sei fazer de melhor, cozinhar!

O banquete, como não podia deixar de ser, virou post aqui e no Sem Medida, com as receitas do dia e fotos lindas do querido Luis Simione (que participou da degustação e fez a sessão de fotos)

Quando eu e Lara fizemos a divisão das carnes e a quem cabia cada um dos preparos, logo pensei em fazer um dos cortes no fogão e finalizá-lo com a beurre noisette que adoro. Quando olhei para a peça de bife ancho lindamente marmorizada, defini que seria ela a trabalhada. Como a idéia era fazer testes, ver como o produto se comportava em diferentes preparos, dividi a peça e destinei metade para a churrasqueira e metade para a chapa.

O bife ancho é um corte muito especial por conta da maciez e sabor, conforme explicou a Larissa lá no Sem Medida. E tem uma regra aqui que quase não falha: tudo que é muito saboroso fica ainda melhor com um banho de manteiga queimada. Simples assim… foi o que fiz.

Outro diferencial, não apenas na maneira que fizemos o bife ancho, mas em todos os preparos, foi que só acrescentamos sal na carne depois de pronta (e muito pouco). Apenas após a finalização polvilhamos os preparos com flor de sal, garantindo que a carne não endurecesse ou  perdesse seus sucos por conta da desidratação provocada pelo sal.

Ingredientes – 2 porções

2 bifes anchos com aproximadamente 3 dedos (4 cm) de altura;  1/2 tablete de manteiga sem sal; flor de sal à gosto.

Modo de fazer

Como esse é um daqueles preparos simples mas que depende do bom olho do cozinheiro fotografamos aqui um passo a passo que vai ajudar bastante na compreensão.

Comece preparando a beurre noisette. Leve a manteiga ao fogo baixo, deixe derreter e continue mexendo delicadamente até que as partes brancas e solidas do leite escureçam e fiquem em um tom de dourado/castanho e solte o gostinho de avelãs.

Passe a manteiga para um recipiente e na mesma frigideira antiaderente suja de manteiga e aquecida, disponha os bifes. Doure por 2,5 minutos de cada lado (use o timer). Isso vai garantir uma crosta escura e crocante.

Agora é hora do banho: regue os bifes com a manteiga queimada generosamente e dos dois lados, a carne vai ficar assim, linda, brilhante, vitrificada… isso sem falar no sabor…

Antes de servir, deixe a carne descansar por 5 minutos para que os sucos se acomodem e não escapem durante o corte.

Polvilhe com flor de sal e voillà: hora de partir para o ataque!

Por hoje é só de receitas, mas nos próximos posts faremos aqui e no Sem Medida as receitas dos acompanhamentos.

Bom apetite!

PS- esse não é um publieditorial, é empolgação mesmo com o produto e vontade de compartilhar com amig@s e leitor@s o achado!

Harmoniza com… por Marcelo Pedro (No copo) e Marina Novaes (Na pick’up)…

Como o assunto é carne, e  que carne, resolvi harmonizar o bife ancho com beurre noisette, com um vinho uruguaio. Nada da óbvia harmonização de Tannat uruguaio, ultra tânico, até ríspido, com churrasco. Além de ser uma carne super macia, suculenta e saborosa, ainda vem com o sabor de nozes amanteigadas da beurre noissette.

Minha sugestão é um vinho da Bodegas Bouza, na verdade o topo de linha deles o tinto Monte Vide Eu, um corte com 50% de uvas Tannat (a mais típica uva uruguaia), 30% Merlot e 20% Tempranillo, colhidas manualmente, vinificadas e envelhecidas separadamente. Passam entre 10 e 16 meses em barricas de carvalho francês e americano, e o resultado é excelente: um vinho potente, tânico, mas sem agressividade, super equilibrado, que acompanha perfeitamente o bife ancho do post de hoje.

Não decepciona e o preço, lá no Uruguai, não é nem um pouco exorbitante, super honesto e com ótimo custo/benefício. Para adquiri-lo, vale uma viagem a Montevidéu, e uma visita a Bodega, com direito a degustação e um excelente almoço, a base de assados uruguaios, é claro. Quer saber ainda oque é melhor? O preço desta visita, incluindo o táxi do centro da cidade até a Bodega Bouza sai por US$ 135.00 (US$15.00 do táxi). Eu não fui ainda, mas meu compadre Guilherme que foi lá primeiro e meu colega José Paulo (este último depois que eu indiquei), foram e adoraram o passeio, os vinhos e a comida.

No Brasil é importado pela Decanter, mas aí o preço fica um pouco mais salgado, por volta dos R$ 200,00. Mas para uma carne especial, um vinho especial! Tim-tim!

Eu sou muito amante do Uruguai. Já fui umas boas vezes, a Patrícia uma das minhas melhores amigas mora lá, o presidente doa 90% do seu salário, todas as crianças da rede pública de ensino receberam um computador do governo, é um país campeão no número de livrarias. Enfim, este post não é sobre nosso país vizinho, mas o fato é que eu peixetariana que sou, felizona abro uma exceção lá. Almoço e janto no El Palenque, que além de ter carnes incríveis, tem a melhor tortilla do país.

Então, quando o assunto é carne, só consigo harmonizar pensando no Uruguai. Então de cara, mando um tango. Ok, todo mundo associa o tango a Argentina, mas @s uruguai@s juram que o tango é PLATENSE, ou seja do rio da Prata.

E Malena Muyala, é uma cantora de tango, valsas e milongas. Linda, jovem, e super politizada (é militante feminista). Tivemos a sorte de pegar um show dela em 2009, no lindo lindo Teatro Sólis. Olha só que delicia a canção Miente.

Para continuar no ritmo platense e tango, recomendo colocar no som, enquanto estiver a mesa grande de amig@s se refestelando de comida, o Bajofondo. Ficou bem conhecido por aqui por ser tema de novelas e tal, mas o caso que é com este tango eletrônico eles  contemporizaram o ritmo. Usam samplers do Astor Piazzola, Alfredo Zitarrosa e por aí vai. Eu quando escuto as batidas eletrônicas misturadas com estas raízes latinas, me sinto transportada para a vida urbana de Montevideu.

E o grupo de argentin@s e uruguai@s, contam com DJ, violinista, bandoneonísta, contrabaixista, percussionista e até um VJ. Fora que são politizados e descolados.

Escolhi para ouvir Ya No Duele, com uma típica letra de coração partido.

Ainda bem que vou me aposentar no Uruguai!