Cozinha da Matilde

Deu na Revista da Folha

RELATO SOBRE UM JANTAR QUE NÃO ERA JANTAR, PREPARADO POR UM CHEF QUE NÃO ERA CHEF

O performer e ator Ieltxu Ortueta, que oferece jantar em espetáculo

Caro comandante por Gustavo Fioratti

Era para ser um jantar? Tudo indicava que sim. Mas houve algo fora de lugar, uma vez que a pessoa que se apresentou como chef não era chef coisíssima nenhuma.

Ieltxu Ortueta, 32, descobriu-se mais tarde, assumiu identidade falsa! É de origem basca, da cidade de Bilbao, Espanha, onde estudou história da arte e do teatro. Vive no Brasil desde 2003, realizando a performance “Extranjis” na casa de terceiros.

Está tudo documentado. O convite de Ieltxu veio por e-mail. Foi aceito por 21 pessoas que se agruparam em um quintal de uma casa apelidada de Matilde. Isso mesmo, Matilde é o nome do antigo sobrado de dois andares, escolhido como palco da ação e assim batizado pelos proprietários em referência à amante de um certo poeta chileno Pablo Neruda.

O lugar tem fartas varandas e ampla área externa habitada por dois cachorros e dois gatos, na Vila Madalena. Os proprietários estavam infiltrados entre os convidados e, afirmam, não tinham ideia do que a noite lhes reservava. Letícia, a dona da casa, usava flor de feltro amarelo e vermelho nos cabelos encaracolados. O marido, Marcelo, tem perna mecânica e vestia camiseta com Jimi Hendrix estampado. Não consta do relatório redigido pelo falso chef após o evento, mas o casal se conheceu no ano 2000 em uma festa a fantasia. Ele foi vestido de Teodoro, um dos dois maridos de uma tal Dona Flor; e ela, de Pedrita, filha de Fred e Wilma Flintstone.

Do confinamento
Houve espera e certa apreensão entre os convidados na hora que antecedeu o início do jantar que não era jantar. Ieltxu apareceu em frente à porta por volta das 21h e, do alto de três degraus da entrada, pediu silêncio. Tinha um charuto e um copo de uísque em mãos. Voz firme e rouca como a de um general cubano.

Ieltxu tem cabelos curtos e castanhos, um princípio de calvície, nariz alinhado com a testa, olhos arregalados, fumante. É casado, pai de um filho de um ano, mora na região central, tem sotaque marcado por um erre puxado do céu da boca e pela dificuldade em pronunciar palavras como pão e macarrão.

Os convidados passaram por uma espécie de interrogatório. Um pouco constrangidos, foram questionados pelo “anfitrião” sobre suas origens, seus times de futebol e como se sentiram quando experimentaram a sensação de ser estrangeiro.

Acabaram divididos em dois grupos: de um lado, quatro sujeitos que nunca haviam sido parados pela polícia na vida; do outro, 17 elementos sem a mesma sorte: conheciam procedimentos de revista e inquérito.

Após terem seus documentos de identidade apreendidos, os convidados foram orientados a entrar, um por um, na residência. Passaram individualmente por mais uma batelada de perguntas. Tiveram impressões digitais recolhidas com tinta cor-de-rosa em cascas de ovos (alguns estavam cozidos, outros não) e foram confinados em um banheiro de azulejos coloridos, cuja área total não passava de 5 m2.

Uma câmera digital foi entregue a um dos presentes e acabou passando de mão em mão, para que aquela situação insólita fosse toda captada. Havia câmeras espalhadas por vários cômodos. Os tais ovos que os convidados seguraram durante a clausura seriam usados na preparação da refeição, numa etapa seguinte.

Importante dizer que, no confinamento, houve troca de informações entre participantes. Fabiana, jovem de cachos loiros, passou seu telefone para Alexandre, jovem de óculos com armação preta, funcionário de uma agência de promoção. “De médio porte”, afirma ele, que estava “em busca de novos horizontes”.

Do jantar
Após 15 minutos em um banheiro apinhado, os 21 eleitos pareciam mais entrosados -mais suados também. Foram, enfim, libertados e, na cozinha, sob comando de Ieltxu, deram início à preparação do esperado jantar.

O grupo foi orientado a cortar batatas e cebolas sobre uma mesa de madeira, enquanto a panela aquecia no fogo. Os ovos, aqueles do banheiro, pouco a pouco foram sendo quebrados em uma imensa tigela.

Todos obedeceram aos comandos de Ieltxu, tomando seus lugares numa espécie de teatro do absurdo. O mestre-cuca conduziu esse início de confraternização com um questionamento: “A avó de vocês cozinha bem? E qual avó não cozinha?” Texto devidamente decorado, o que revela o caráter premeditado da ação.

Outros dois fortes indícios de que o jantar não passava de encenação. Primeiro: distraídos com as batatas, os convidados demoraram a notar que Ieltxu enterrou o próprio rosto em uma porção de cebolas picadas, guarnecidas dentro de uma imensa bacia, para assim permanecer por um minuto.

Segundo: a comida não ficou boa. A tortilla estava um pouco sem sal e com o fundo queimado. O depoimento de uma testemunha ajuda a recriar a atmosfera surrealista da noite. Segundo Fabiana López, 29, publicitária, “quando ficamos presos no banheiro com um ovo na mão, houve muito desconforto”. Mas a avaliação final é positiva. “Fomos obrigados a conversar uns com os outros. Lembrou-me de como sempre foi difícil fazer novos amigos ou recomeçar a vida em um outro lugar.”

Ato planejado
Última nota: há mais informações sobre o evento no blog http://de-extranjis.blogspot.com. Dali consta que toda a ação foi planejada por Ieltxu e um de seus comparsas, o diretor de teatro Noberto Presta. Segundo o texto, “Extranjis” é “um encontro pautado nas memórias e sensações que nos remetem ao tema de ser e sentir-se estrangeiro”.

A experiência faz de cada espectador-participante um intruso discreto em um universo de lembranças alheias. Ieltxu recolhe, por e-mail, recordações enviadas pelos participantes. Costura tudo em um único texto, espécie de alento para a catatonia de tempos modernos. A performance “Extranjis” recebeu o Prêmio Interações Estéticas em Pontos de Cultura, da Funarte em 2009. Outros jantares serão anunciados neste ano.